segunda-feira, janeiro 27, 2003



Consegui Correr com a Preta


Por Rui Cardoso Martins
Público, Segunda-feira, 27 de Janeiro de 2003


Há prioridades na vida de toda a gente, mas a do senhor Costa era uma prioridade muito grande. Os que acompanharam o caso ficaram admirados com a quantidade de energia, paixão, planeamento, horas de vigília e papelada que ele gastou para conseguir, no sua singular formulação, correr com a preta.

Todos no prédio lhe deixaram de falar e acham que se trata de um ser doente, ou ridículo, e as duas coisas em simultâneo. Mas eu vi a cara do senhor Costa no tribunal e ele pensa que valeu a pena. Espalhar beatas na escadaria, por exemplo, e escrever as datas nas beatas, a esferográfica, foi um passo fundamental do seu plano: demitir a empregada da limpeza.

De facto, para ele o caso acabou bem. O vizinho que alegadamente o insultou pediu desculpa por lhe ter chamado racista. Ficou registado em acta que tal só aconteceu "por exaltação de momento" na assembleia geral de condóminos e o senhor Costa retirou a queixa.

O vizinho, no entanto, pediu desculpa de ter dito a verdade.

- Sabe, eu na altura nem acreditava. Foi a primeira vez que senti a sério. Nunca me tinha acontecido nada assim em Portugal, mas foi racismo, disse-me a ex-empregada de limpeza.

Era uma senhora alegre, que pediu a rir para não ser identificada

- Ponha aí que sou a preta mais conhecida de Benfica!...

mas estava desiludida por não ter falado no tribunal. O vizinho pedira desculpas para não ter mais chatices e impediu-a de contar tudo. Ao lado dela, no átrio, estava o senhor Gomes, que também precisava de desabafar, e foi assim que me contaram a história do senhor Costa.

O senhor Costa, quando chegou a administrador, disse um dia à mulher (sem saber que a empregada o escutava no cubículo):

- Enquanto eu não puser esta preta daqui para fora, eu não descanso...

E na falta de motivos, já que em seis anos ninguém se queixara, e todos gostavam do trabalho da senhora, todos menos ele, iniciou o ataque terrorista.

Uma vez deu um pontapé num saco do lixo, espalhando-o pelas escadas, e disse que era coisa dela. Outra aspecto da operação foram os cigarros. Ela acabava de limpar e ele chegava a um canto e atirava beatas, nojentas, húmidas e apagadas e ia-se embora, como se estivesse a pôr isco na ratoeira.

Os vizinhos viram que era ele e pediram à senhora para não apanhar aquela porcaria. Então o senhor Costa começou a ir às escadas e pegava nas beatas uma a uma, no escuro, e punha-lhes as datas e registava num caderninho.

Um dia, o administrador achou que já tinha provas e disse sem qualquer aviso prévio:

- Está despedida, dê-me as chaves.

E só pagou até metade do mês de Agosto, e metade do subsídio de Natal, como se houvesse justa causa. A senhora recorreu ao Tribunal do Trabalho e ganhou. Não pediu uma indemnização muito grande por respeito aos outros vizinhos, eram todos a pagar. Dá-se depois a famosa reunião em que o senhor Costa se ofende por lhe chamarem racista, que resultou neste processo.

A senhora chorou muitos dias seguidos, ficou muito ofendida. Disse-me que não tinha culpa da "misturada" do seu sangue angolano, açoreano, holandês, e dizia-o com orgulho, mas nunca lhe tinha acontecido nada dura. Ela viu passar o senhor Costa, enorme, barrigudo, de olhinhos miúdos, na direcção do elevador, mas ele não olhou.

- Ponha aí que foi eu que disse, exclamou o senhor Gomes, ele andava a dizer pelos cafés que os pretos deviam ir para a terra deles, eu ouvi-o dizer 'consegui correr com a preta'! Vai pôr isso?!

- Acho que até ponho no título, disse eu.










Oficial israelita destituído por ter impedido ataque aéreo


Público, Segunda-feira, 27 de Janeiro de 2003


Um oficial dos serviços de informações militares israelitas foi destituído depois de ter impedido, por "motivos de consciência", um ataque aéreo em represália contra um atentado-suicida, no passado dia 5 de Janeiro, em Telavive, noticiou o jornal israelita "Maariv".

Segundo o diário, o tenente não transmitiu uma informação de que dispunha sobre potenciais alvos para um ataque aéreo na Cisjordânia, levando a que a acção fosse abortada.

Em tribunal, o militar argumentou que decidiu reter a informação, uma vez que acreditava que o ataque iria pôr em risco vidas civis e era ilegal ao abrigo das leis internacionais. Acabaria por ser destituído por desobediência e transferido para uma unidade menos qualificada.

Um porta-voz do Exército confirmou à AFP a informação, sublinhando que o oficial foi afastado do cargo depois de ter desobedecido "a uma ordem dos seus superiores". O responsável lembrou que o militar não foi preso, tendo o caso sido "examinado em profundidade".

A revelação de hoje pode explicar o facto de Israel não ter cumprido a promessa de responder militarmente ao atentado de dia 5, em Telavive, que provocou a morte a 23 pessoas, na sua maioria trabalhadores estrangeiros.

Este caso é revelado depois de o Supremo Tribunal de Israel ter recusado o recurso apresentado por oito oficiais que exigiam que o Estado reconhecesse o seu direito a recusar servir nos territórios palestinianos ocupados. Os oito reservistas alegam que a ocupação dos territórios palestinianos por Israel é "ilegal", pelo que exigiam beneficiar do estatuto de objectores de consciência.

Os oito militares representam outros 500 oficiais e soldados na reserva que assinaram uma petição, assinalando a sua recusa em servir na Cisjordânia e Faixa de Gaza.










Contra a Guerra


Por José Eduardo Agualusa
Público, Segunda-feira, 27 de Janeiro de 2003


Vi os soldados americanos partir para a guerra - lembro-me de um deles, desfeito em lágrimas, a lamentar não poder assistir ao aniversário do filho - e ainda assim mantive a esperança de que o bom senso venceria a estupidez; só agora, ao ver os jornalistas partir para a guerra, me convenço do contrário. Quando atrás dos soldados vão também jornalistas é porque o espectáculo já tem data marcada para a estreia. Nos tempos que correm (e como correm!) não existe guerra alguma, e portanto também não existem vitórias nem vencedores, se a imprensa os não noticiar. Os soldados americanos não receiam pela vida, não têm razão para isso, choram porque vão ficar afastados da família durante alguns dias. O sangue, nestas novas guerras americanas, é sempre dos outros - dos pobres. Nos Estados Unidos é mais seguro ser soldado do que cidadão. Um cidadão pode ser vítima de um atentado terrorista. Um soldado, no máximo, perde o aniversário do filho. A uma guerra na qual já se sabe à partida que apenas um dos lados irá sofrer baixas nem se pode com justiça chamar guerra: é um massacre premeditado.

Não acredito que alguém seja capaz de defender George Bush, e a sua retórica de cowboy serôdio, sem se sentir, lá bem no íntimo, um pouco ridículo. Vejo-o na televisão, com aquele ar sempre um pouco atordoado de quem cinco minutos antes se tentou matar com um biscoito, e chego a sentir orgulho em José Eduardo dos Santos. Uma das virtudes de Bush (até nos maiores erros há virtudes) é a de ter permitido a todos os povos mal governados do mundo o consolo de se poderem comparar, com óbvia, embora discutível, vantagem, à única grande potência:

"Sim, o nosso presidente pode não parecer mais inteligente do que um pargo, mas pelo menos não se parece com um pargo."

Etc., há inúmeras variantes.

Acompanho com simpatia as manifestações contra a guerra que se multiplicam pelos cinco continentes. Inquieta-me, porém, a tentação, por parte de alguns dos manifestantes, de apoiar o Iraque. Esta é, aliás, uma armadilha ingénua na qual os conselheiros de George Bush gostariam de aprisionar os seus detractores. Esperam que saltemos da frigideira para o lume louvando alegremente as delícias de morrer queimado.

Os Estados Unidos foram durante décadas uma referência moral para a maior parte da humanidade, o país da liberdade, da democracia, da justiça racial, e conseguiram criar e manter tal imagem mesmo enquanto assassinavam as populações indígenas, mesmo enquanto perseguiam intelectuais e linchavam negros, mesmo enquanto lançavam bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki, mesmo enquanto apoiavam Pinochet, Mobuto, Suharto e Saddam Hussein, mesmo enquanto enforcavam ou electrocutavam prisioneiros, mesmo enquanto fabricavam e comercializavam as minas que matam e mutilam, e continuarão a matar e a mutilar durante as próximas décadas, as crianças inocentes de África. Esse tempo acabou. O encanto quebrou-se. A Europa moderna, pós-colonial, multicultural, livre, próspera, unida e democrática, ocupa hoje tal lugar. Para muitos cidadãos do chamado Terceiro Mundo, envolvidos no combate pela democratização e pelo desenvolvimento dos seus países, o mais importante já não é saber o que os americanos irão ou não fazer amanhã, que outro país, depois do Iraque, irão ou não conquistar, o mais importante é saber se os europeus conseguirão sacudir de vez a tutela americana e assumir por inteiro o seu novo papel.

Espero que os actuais manifestantes não percam o fôlego, e sejam capazes de resistir para além do Iraque, criando um movimento muito mais amplo, mais maduro, contra a Guerra, todas as guerras, por uma civilização que olhe para os exércitos com o mesmo horror e a mesma incredulidade ("como foi possível a existência de tais instituições?") com que hoje olhamos para a escravatura. Agora é o Iraque, a seguir o Irão ou a Arábia Saudita, amanhã poderá ser a Venezuela, se a exportação do petróleo para os Estados Unidos estiver em causa, e finalmente o Brasil, caso Luís Inácio Lula da Silva se atreva a pisar o risco. Não há porque parar. A menos que alguém os faça parar.










Os Caçadores de Almas




Por Paulo Moura
Público, Segunda-feira, 27 de Janeiro de 2003


Salvar vidas é uma arte, uma maldição, um vício, uma paixão. O fabuloso destino de três operadores-tripulantes do INEM.

O homem entra no seu carro e parte a grande velocidade. São quatro e meia da madrugada. É um homem corpulento, de uns 30 anos, e o carro é pequeno, um utilitário comercial. O homem esteve numa noitada, com os amigos. Provavelmente a jogar, porque leva no carro, ao lado de si, uma caixa com cartas. "Fortune", diz na tampa da caixa. Esteve com uns amigos e umas amigas. Uma das amigas é magra e tem olhos negros. É talvez nela que o homem vai a pensar, quando arranca, de Lisboa em direcção a Almada, onde vive. Foi talvez por causa dela que saiu mais cedo, sozinho, talvez por causa dela siga de olhos inquietos e mãos trémulas ao volante. Talvez esteja já arrependido de ter deixado os companheiros, talvez considere a hipótese de voltar para trás. Talvez acelere ainda mais para ultrapassar as dúvidas.

Ou talvez tudo isto seja pura ficção. A verdade é que não sabemos nada sobre este homem. É um homem qualquer conduzindo em direcção à ponte 25 de Abril, sozinho, na madrugada, com um baralho de cartas no lugar do morto.

Está lua cheia. Uma lua baixa sobre o rio, a deflagrar no espaço, intensa e descabelada como um novelo de fumo. Ao entrar no tabuleiro da ponte, o homem terá olhado o horizonte, que lhe pareceu quimérico e fortuito, à mercê de um sopro. Talvez vá neste momento a devanear sobre a natureza simultaneamente precária e transcendente dos milhões de seres cintilando nesta paisagem estilhaçada numa lanugem de fibras que fluem e latejam... Só sabemos que o homem avança na direcção da lua cheia.

A lua ilumina o velho contentor encravado a um canto, entre outros contentores e uma enorme ambulância, nas traseiras da Urgência pediátrica do hospital São Francisco Xavier. Há uma mesa, uma televisão, três cadeiras, três camas de campismo e três pessoas dentro do contentor.

Sónia Lopes, como os outros dois tripulantes socorristas do INEM, está à espera de uma chamada, via rádio, do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU). Toda a noite. Estão ali à espera, no seu contentor exíguo, que uma das mais de 1500 chamadas diárias da linha de emergência médica do 112 lhes calhe. Numa noite, podem fazer dois, cinco, dez serviços. O rádio chama, "Ambulância 1! Ambulância 1!", e é preciso levantar, calçar os sapatos e, em poucos segundos, estar a caminho, a toda a mecha, para assistir a vítima de um trauma, reanimar um idoso com paragem cardíaca, socorrer a vítima de um acidente de automóvel.

Estão a ver televisão e a trocar piadas, até que algo terrível aconteça.

["Foi um acidente de viação, há cinco minutos. O senhor bateu com o carro contra um poste, e saiu, com uma fractura na cabeça. Mas o senhor voltou a entrar no carro e fugiu".

"O quê? Então onde é que está o ferido?"

"Não sei. É preciso encontrar o ferido".]

É como se estivessem os três aninhados no escuro, num oceano de éter onde ecoam todos os gemidos da Humanidade. Aninhados à espera que algum dos milhares de telefonemas sinistros se venha esmagar, no seu voo cego de morcego, nas paredes do contentor.

["Olhe, é a rapariga que vive comigo, ela está a bater nos miúdos... Ela tem problemas, já teve depressões..." É uma voz de homem maduro, desesperado.

"Que idade tem a senhora?"

"Ela tem 19 anos".

Ouve-se agora nitidamente alguém a correr, uma mulher aos gritos, uma pancada, uma criança a chorar.

"Ai meu Deus, ela deu um pontapé no miúdo, na barriga... Ai meu Deus... Mandem alguém..."]

É como se três pessoas tivessem sido apanhadas na encruzilhada de toda a tragédia humana, um concentrado de azar, um buraco negro de calamidade. Aquilo que a maioria de nós vê de perto apenas duas ou três vezes na vida, e preferia nunca ver - a morte, o sangue, a tragédia - é o quotidiano deles.

É como se os perseguisse um cortejo de estropiados. Como se, durante uma vida inteira, os seus semelhantes fizessem a gentileza de lhes reservar o pior de si próprios - os seus momentos fatídicos, os seus esgares de horror, as suas súplicas indignas, o seu vómito, a sua incontinência.

Como se o rosto dos outros fosse um permanente abismo de destruição, em cujo pestanejar exangue e lento nos piscasse o olho a própria morte. Como se pode aguentar isso?

A vida de um operador de emergência médica está para lá de todos os limites imagináveis de dureza. Entre os turnos de dez horas ao telefone a orientar as chamadas do 112, prestar pré-socorro, accionar os meios de socorro, e os de doze horas na ambulância, trabalham dias e noites sem interrupção, não têm tempos livres, nem vida familiar, nem social, ganham pouco mais de 100 contos por mês, não têm carreira profissional e, na maioria dos casos, trabalham sem contrato estável.

É por isso que há algo de paradoxal na imagem dos três às gargalhadas, a trocarem histórias e piadas num contentor no meio da noite gelada e luarenta: a quem vive mergulhado na tragédia, só resta o humor, para sobreviver. Mas para alimentar o humor, só resta a própria tragédia.

Uma vez, um homem teve um enfarte durante o casamento da filha, conta um. Chegou a ambulância, fizeram as manobras de reanimação. O homem morreu. Mas o casamento continuou, porque a noiva era tão feia que, se perdesse aquela oportunidade, nunca mais casaria. Ah, e daquela vez em que chegaram, a tripulante se dirigiu rapidamente ao homem, deu-lhe uma injecção, pô-lo a soro, e só quando a ambulância partiu é que lhe perguntou: "Então? Sente-se melhor da dor?"

"Qual dor?" respondeu o homem. Não era eu o doente".

Outra vez, foi uma mulher, que, na maca, dentro da ambulância, quando o tripulante se aproximou para lhe medir os parâmetros, lhe deitou com afinco a mão ao traseiro. Outra mulher, gorda, de uns 40 anos, "também muito carente", foi mais longe: mal o tripulante se debruçou para lhe ouvir a respiração, agarrou-lhe na cabeça e... "esfregou-a na... coisa. Era uma mulher muito carente..."

Pode ser chocante ouvir, durante horas, estas histórias. E ver o olhar aparentemente cínico de um socorrista do INEM, que não parece dar-se conta do que há nelas de macabro e de cruel. Não é menos surpreendente seguir o seu olhar imperturbável ao levantar-se num ápice, para chegar em escassos minutos a casa de uma octogenária em crise cardio-respiratória. O seu olhar frio quando lhe faz todos os testes, quando liga o oxigénio, quando a leva até à ambulância. E depois é desconcertante ver a fremente e inabalável onda de ternura que enche por completo aquele olhar, ao segurar a mão da doente, durante toda a viagem, ao sussurrar-lhe ao ouvido: "Minha querida. Minha querida".

Hoje, quarta-feira, os três funcionários estão deitados no contentor a ver o filme do canal 18. "Olha, está com dificuldades respiratórias. Está até com farfalheira. Essa respiração boca a boca está mal feita. Mandem a ambulância!" E a escolhida, esta noite, para vítima de todas as piadas, é Sónia, e o tema é a sua baixa estatura.

"Já estou a imaginar: esta noite vai haver um acidente, mas não teremos de fazer nada. Mandamos a Sónia por uma frincha do carro, para salvar o encarcerado. Bom, mas ela tem sorte, é a única que pode dormir bem, porque se se deitar numa cama da urgência pediátrica ninguém vai dar por nada..."

Sónia ri-se, mas talvez nenhum lugar no mundo lhe cause pânico como uma urgência pediátrica. Sabe desde os 14 anos que não quer ser mãe. Tem medo de bebés. "Não consigo pegar num recém-nascido, faz-me impressão". A sua maior angústia é um dia lhe surgir uma situação com um bebé. Uma vez, no CODU, salvou uma criança com obstrução das vias aéreas, ao telefone, dando instruções ao pai. Mas uma situação real nunca aconteceu, nos dois anos e tal em que trabalha no INEM.

Sónia tem 25 anos e tornou-se tripulante de ambulâncias aos 19, na Cruz Vermelha. Fê-lo porque se sentia sozinha, tinha dificuldade em contactar com os outros. "Eu era muito metida comigo. Era mesmo apática, podia estar alguém a morrer a meu lado, que eu não ligava". Parece uma anti-vocação. Ou seria uma vocação tão violenta que Sónia, sozinha, não tinha forças para a usar.

Queria estudar Direito, mas entrou em Biotecnologia. Desistiu quando concorreu e foi aceite no INEM. Agora, além dos serviços de operadora do 112 e de tripulante de ambulância, ainda dá formação nos bombeiros de Cacilhas, como voluntária.

São 5h44 da madrugada. Os três tripulantes estão a dormir no contentor. O rádio apita. "Ambulância 1! Ambulância 1! Acidente no tabuleiro da ponte 25 de Abril! Homem encarcerado!"

"Ambulância 1! Ambulância 1! Mulher, 74 anos, dificuldades respiratórias..." É na zona das Amoreiras, são 5h20 da manhã, de sexta-feira, 13. Os três tripulantes levantam-se num salto, calçam-se e saem do contentor, estremunhados. Paulo Anjos senta-se ao volante da ambulância. Liga a sirene.

Foi por isto que veio para o INEM. Para poder conduzir como louco, sem respeitar as regras de trânsito. Antes, trabalhara numa escola de condução. Estreou-se em 1992 a conduzir ambulâncias. Mas uma paixão pelo mundo da emergência médica foi tomando conta dele, aos poucos, até absorver totalmente a sua vida. Em 96, fez o curso de tripulante socorrista, no INEM, e começou a trabalhar também no CODU. Em 98 conheceu uma médica também operadora do CODU e casou com ela. Têm dois filhos.

A ambulância dispara pela A5, corta à direita, em direcção a Campo de Ourique. A velocidade é inacreditável, não há sentidos proibidos, nem faixas da direita, nem semáforos vermelhos. Lá atrás, os tripulantes andam aos trambolhões. "Agarrem-se! Paulo Anjos vai ao volante!"

A cidade está em silêncio. Tudo o que se ouve é a sirene e os ruídos que o rádio vai soltando a espaços, misturados com fragmentos de palavras, para não nos permitir esquecer que os telefonemas continuam no ar, como fantasmas à solta.

["Desculpe estar a telefonar. O meu irmão mais novo teve agora relações com a namorada, pela primeira vez... e chegou a casa a sangrar. Rebentou o prepúcio. O que devo fazer?"]

Como vozes num pesadelo...

["Podia trazer uma ambulância aqui ao pé da farmácia do Altinho?"

"O que se passa aí?"

"Oh pá é umas facadas"

"Quem é levou facadas?"

"Um homem"

"Que idade tem?"

"O homem ou eu?"

"Ele"

"Oh pá, trinta e tal"

"Quem lhe deu as facadas?"

"Então, o homem que lhe deu as facadas foi embora..."]

...como almas a desprender-se dos corpos, aflitas, suplicantes.

["O meu neto não desperta". É uma mulher. Há pânico na sua voz.

"Diga-me o que se passa"

"Chegou na carrinha da escola. Disseram que ele vinha a dormir. Mas ele não acorda".

"Que idade tem o seu neto?"

"Tem 3 anos. Façam qualquer coisa! João! João!"

"Minha senhora, deite a criança de lado... A ambulância já vai a caminho, mas não desligue, faça o que eu lhe vou dizer..." Ouvem-se os passos da mulher a afastar-se. A sua voz lá longe, chorosa: "João! João! Conhece a avó, o menino? Conhece a avó?" A operadora não desliga a chamada. É uma regra de ouro: um operador do INEM espera sempre que o interlocutor desligue primeiro, ou que o problema esteja solucionado.]

A ambulância chega à morada indicada. A filha da senhora que não respira espera-nos à porta. Subimos. É um apartamento pequeno. A doente já está ligada a um ventilador. "Há vários anos que sofre disto. Mas hoje piorou muito", diz a filha, encolhendo os ombros, como quem diz: não há nada a fazer, seria melhor que acabasse tudo. Paulo Anjos esforça-se por não mostrar o seu enfado. "O que eu gosto mais é de reanimações, acidentes e partos. Já ressuscitei umas boas dezenas de pessoas". Às vezes, não se consegue, e a sensação de impotência é avassaladora. Paulo lembra-se para sempre de um camionista, num acidente, que não conseguiu salvar. E de um suicida a quem conseguiram passar um telemóvel, e com quem falou durante longos minutos. "Era em Sesimbra, o tipo estava à beira de uma falésia. Eu mandei os bombeiros, dizendo-lhes para se aproximarem com cuidado, e fui falando com ele, para ganhar tempo". Mas a meio do telefonema, o homem lançou-se no precipício.

Cumpridos os passos regulamentares - medir os parâmetros médicos, telefonar ao CODU - levamos a mulher para o hospital. A ambulância segue agora muito devagar, sem sirene. É sempre assim. Só há pressa até chegar ao doente. Depois, não há mais nada a recear, porque já lá estão os tripulantes do INEM. E com eles por perto, acreditam, ninguém morre. Se tiver de ser, será no hospital. Até lá, têm instrumentos e artes para ressuscitar o defunto mais convicto.

"Ai que eu estou muito mal, com muita falta de ar", diz a mulher, que teve de ser temporariamente desligada do ventilador. "Inspire como quem cheira uma flor, expire como quem apaga uma vela", vai-lhe dizendo ao ouvido o tripulante, segurando-lhe na mão. Lá fora, vagueiam estranhas personagens na noite húmida e misteriosa.

Paulo conta que certa vez encontrou um homem que tinha reanimado, meses antes. O homem lembrava-se perfeitamente dele, e relatou-lhe com todos os pormenores o que se tinha passado, enquanto esteve "morto". "Lembro-me que o oxigénio se esgotou, tiveram de pedir mais, chegou um carro... lembro-me de tudo", disse o homem. Era impossível, porque ele estava com os sinais vitais "em linha". Não respirava, o coração não batia, estava tecnicamente morto. Mas o homem lembrava-se. E acrescentou ainda que, apesar de estar deitado no chão, se recorda de ter visto Paulo de cima para baixo. "Era a alma dele, já desprendida do corpo", explica Paulo Anjos. Como se as almas estivessem prontas para fugir dos respectivos corpos à primeira oportunidade e a função dos agentes de emergência médica não fosse mais do que fazê-las voltar ao seu lugar.

Nesse caso, o CODU é uma espécie de grande bazar de almas recalcitrantes. É uma sala repleta de telefones e computadores, com cerca de dez operadores da linha do 112 a trabalhar em cada turno, mais uns cinco nas comunicações de rádio, para activar os meios, mais um ou dois médicos.

["Boa noite. É uma senhora que está com sintomas de se estar a passar."

"O que é que a senhora está a fazer, exactamente?"

"Está a ter reacções bruscas, a partir tudo. Oh mãe, tenha calma!" Ouve-se uma mulher aos gritos. "Oh meu deus, ela está a despir a minha sogra toda! Por favor, mandem uma ambulância!"]

O operador atende a chamada de emergência, da qual faz uma ficha numerada no computador. Sozinho ou com a ajuda do médico, que ouve parte das chamadas e pode ser consultado a qualquer momento (mas nunca fala directamente com o doente), toma uma decisão: envia ambulância ou helicóptero, ou dá conselhos, ou presta pré-socorro até chegar a ambulância.

[Uma mulher a gritar a plenos pulmões: "Aiiii a minha mãe... Espere... já está boa!"

"Está boa? O que é que aconteceu?"

"Desmaiou na casa de banho, estava de olhos abertos e revirados, a boca aberta... mas já acordou"]

Às vezes a loucura parece rebentar como uma bomba no centro do próprio CODU. Quando um operador se levanta de súbito, aos gritos: "Então clientes? Que se passa com vocês? Não telefonam? Não têm acidentes? Estão com medo?" Ou quando outro passa a noite a fazer telefonemas indecentes para um número de onde proveio uma chamada falsa.

[Mulher, 28 anos: "Então é assim: eu não me estou a sentir muito bem".

"O que se passa consigo?"

"Sinto um calor enorme por dentro".

Médica: "É tudo na cabecinha dela. O que precisa sei eu".

"Faça um chá..."

"O que é este calor que tenho por dentro?"]

Nem todas as chamadas correspondem a verdadeiras emergências.

[Uma voz trémula, de homem muito velho: "A minha mulher tem dores nas pernas. Não consegue ir ao hospital".

"Tem essas dores há muito tempo?"

"Ui, há muito, sim".

"Não é uma emergência, ligue para os bombeiros. Que idade tem a sua mulher?"

"Faz hoje 80 anos!"

"Então parabéns!"

"Obrigado"]

Há alturas em que parece não haver uma única chamada séria...

[Mulher de 46 anos: "Eu parece que me esqueço de respirar. O coração parece que também me pára. Estou para começar a dormir, e dou um salto".

"Faça um chá quente, tente relaxar, amanhã vá ao médico"

"Mas eu esqueço-me de respirar. Quando vou a dormir, dou um salto"]

... em que o INEM parece ter-se tornado no passatempo de todos os dementes do país.

["É para vir uma ambulância o mais depressa possível!"

"O que aconteceu?"

"É um homem... mas acho que já morreu e tudo. Já não respira".

"O senhor tem a certeza do que está a dizer?"

"Tenho quase a certeza. Espere... respira. Espere... ele fala. Está a falar"]

Há alturas em que não parece tratar-se apenas de emergência médica. É o mundo inteiro que está a desabar.

[Gritaria. Ruído de objectos a partir. "Não, não, não, não!", guincha uma mulher. Um homem diz com voz abafada: "Puta!" Uma criança põe-se numa berraria estridente. Finalmente, alguém fala ao telefone: "A minha mulher, tem 22 anos, não consegue respirar". Ouvem-se móveis a serem arrastados, depois partidos.

"O que tem ela mais?"

"Está a deitar sangue"

"O que aconteceu?"

"...ela diz que bateu com o nariz na parede..."]

Há regras precisas no atendimento e orientação dos casos urgentes. Certas perguntas-chave, certos procedimentos-padrão. Mas não é uma ciência exacta. Há um lado obscuro. Por vezes é necessária uma intuição especial para perceber o que verdadeiramente se passa do outro lado da linha.

["Fui assaltado. Partiram-me o carro todo. Cortaram-me a cara..."

"Porque não vai ao hospital?"

"O carro não anda. É de noite e isto é uma zona muito perigosa. Estou aqui sozinho com a minha namorada, perdidos. Os que me assaltaram andam por aí... Já ligámos três vezes, estamos aqui há uma hora. Deixe-se de burocracias e mande a merda da ambulância, rápido!"

Fala a namorada, voz de menina queque, a tremer: "Fomos assaltados, está a ver?"]

É necessário - e exigido, a cada operador - um sexto sentido, uma capacidade de pressentimento. Afinal, as sua matérias primas são a tragédia, o medo, o imponderável, o acaso, o limite.

["Demora muito?"

"O quê?"

"A ambulância".

"O que se passa?"

"Um senhor ia a sair e três senhores saíram da minha porta e agrediram o senhor".

"Agrediram com quê?"

"Com um machado. O senhor está cheio de sangue".

"Que idade tem ele? Fala?"

"48 anos. Fala. Os outros levaram-no lá para dentro e deram-lhe com o machado na vista".

"E onde está o senhor?"

"Está aqui na escada. Os que lhe bateram estão todos cá em casa. Olhe, eu vou pôr uma vela acesa na minha janela. Assim quando a senhora chegar vê logo onde é"]

Quem trabalha aqui há muitos anos, sabe que há constâncias, tendências, ciclos. Alguns mais ou menos explicáveis, como as cólicas e dores de cabeça à segunda-feira de manhã, ou a incidência de acidentes à hora de almoço, quando as pessoas saem dos empregos. Ou ainda os acidentes de viação e agressões às sextas e sábados à noite. Ou mesmo o elevado número de filhos a relatarem ataques e agravamentos súbitos da doença dos pais idosos, no intuito de os mandarem para o hospital durante a quadra natalícia, e assim poderem ir para fora, ou dar festas em casa...

Mas como compreender (será a Lua?) que em certos dias haja dezenas de partos - normais, prematuros, complicados, de toda a espécie - quando noutros dias não há nenhum?

[Mulher de 68 anos numa aldeia alentejana: "Boa noite, eu estou muito aflita do coração e queria ir ao banco".

"Sente alguma dor?"

"Não. Estou muito aflita, muito aflita".

"Tem de me explicar melhor".

"O meu marido está a dormir e eu quero ir ao hospital"

"Teve algum problema, esteve a discutir com alguém?"

"Ando aborrecida, sim"

"Que medicamentos anda a tomar?"

"Não sei. Não sei ler. Mas posso levar..."

Médica: "Não sabe ler? Bem, não vou mandar uma ambulância. Ela que não acorde o marido, senão ainda leva uma coça. Diz-lhe que aqueça um leitinho e se deite no sofá, longe do marido".

"Minha senhora, aqueça leite..."

"Não mandam? Então vou a pé, aí ao hospital de Alcácer"

"Não vá. Está uma noite muito fria. Ainda fica mesmo doente".]

Várias vezes por dia, acontece não haver ambulâncias disponíveis para todas as situações de verdadeira emergência.

["Boa noite. A minha mãe está um bocado esquisita. Está com a boca ao lado, não sei se lhe está a dar alguma coisa".

Médica: "Pergunta como tem ela os olhos".

Operadora: "Como tem ela os olhos?"

"Está com um olhar torto..."

Médica: "Ah, está a fazer um AVC. Onde é? Lumiar? Oh meu Deus, não há ambulâncias nessa zona. Meu Deus..."]

Muitas vezes, os operadores irritam-se, gritam com os "clientes".

["Daqui é da escola C+S de Setúbal... é uma senhora professora, que já tem antecedentes psiquiátricos... agora está na aula a ter um comportamento muito estranho... está a fazer coisas esquisitas em frente dos alunos..."

"Então levem-na para uma sala e vejam se a acalmam. Mas tirem-na da frente dos alunos, por favor!"]

Muitas vezes há várias chamadas sobre o mesmo caso, e de repente os operadores estão todos em pé, a discutir, nervosos, como se a tragédia fosse ali mesmo. Outras vezes há um grande acidente e todos se mobilizam para se ocupar dele. Alguns vão dali para o local, para coordenarem as operações. E mesmo nessas alturas, em que o CODU se transforma numa autêntica "sala de guerra", as pequenas tragédias não param e é preciso dar-lhes a mesma atenção de sempre.

["João! João! João! O menino está a dormir? O menino conhece a avó? Acorda, João! João!"]

"João! João!", ouve-se a voz da avó, lá longe. "Minha senhora? Minha senhora!" Maria da Luz quer cortar a chamada mas só o pode fazer depois de ouvir o telefone desligar-se do outro lado.

Maria da Luz é de Coimbra, mas veio para o INEM de Lisboa em 1991 e nunca mais quis regressar. Trabalha no CODU, nas ambulâncias e dá formação nos cursos do INEM e em corporações de bombeiros. Aos 30 anos, não se imagina a fazer outra coisa. "É quase como uma missão que tenho na vida". Casar, ter filhos, era um sonho que se foi transformando numa ironia: a vida que tem hoje, com o permanente contacto com a desgraça, fez, por um lado, crescer em si um agudo sentido da relatividade dos valores e a convicção de que só o amor e a família valem a pena. Por outro lado, impediu-a de ter amor e uma família.

A maioria dos operadores-tripulantes não tem esposo nem namorado. Os que têm, encontraram-no dentro do próprio INEM. "Nós passamos muito tempo juntos. Comemos juntos, dormimos juntos. O Natal, a Páscoa. É como uma família. Acabamos por nos desligar dos amigos, não saímos à noite, não fazemos qualquer vida social. E é difícil conhecer pessoas fora do meio. Quando muito, bombeiros, Cruz Vermelha..."

"Ambulância 1! Ambulância 1! Mulher, 84 anos..." Lá vamos nós salvar mais uma velhinha em apneia. É preciso atravessar a cidade, que está infernal de trânsito. Luz vai no seu lugar predilecto, aos comandos da sirene. Adora combinar os vários sons, alternar o "niiiii nóóó niiii" com o "uauuu uauuu" com o Piii pi pi piii". É uma DJ de ambulância. Chegamos. A dona Arminda está deitada, de boca muito aberta, imóvel. A filha explica-nos que ela está assim, praticamente sem respirar, há horas. Tentam ligar-lhe soro, mas as veias rebentam todas à introdução do catéter. Aplicam a máscara de oxigénio. Esperam. Então começa. Como uma onda, uma brisa no deserto.

Por longos momentos, ficamos a ouvir a respiração intensa, ruidosa, espessa, a ecoar majestosa no silêncio do quarto, repleto de santinhos, de crucifixos, de Virgens de Fátima. Cheirar uma flor, apagar uma vela. "Dona Arminda! Dona Arminda". Ela não responde. Respira apenas. Como se respirar fosse a sua linguagem, o seu gesto de apaziguamento, a sua saudação.

Praticamente inanimada durante a transferência para a cadeira de rodas e a maca, foi-lhe casualmente subindo a camisa de dormir pelas pernas magras e brancas. Quando chegou à ambulância tinha as cuecas à vista. Ninguém reparou, e naquele preparo teria ficado, se inopinadamente não surgisse, lesta e encarquilhada, a mão virtuosa e pudibunda da inconsciente Dona Arminda, a puxar a camisa para baixo.

"Dona Arminda! Dona Arminda!" Os tripulantes vão toda a viagem a chamar, para que ela não se esqueça de viver. Cheirar uma flor, apagar uma vela. Luz vai a seu lado, atenta a todos os sinais do seu olhar, que aos poucos se vai tornando expressivo, confiante, cúmplice.

Há algo de estranhamente hipnótico na relação entre doente e socorrista. Uma espécie de jugo tácito, de falência momentânea e radical da personalidade, como o terror estampado no rosto daquele diabético em crise de hipoglicémia que fomos socorrer noutra noite de névoa e gelo.

"Não me deixem morrer", dizia ele, lívido, sentado na sua sala de visitas. "Nunca me tinha sentido assim, náuseas, tonturas, pensei que ia morrer. Por favor, não deixem... Bem hajam, bem hajam!" Como se fosse apenas uma parte de si a ciciar, uma parte vencida e humilhada, e tudo o mais estivesse tomado pelo monstro da morte. Que resta senão implorar, quando o monstro nos cerca por fora e por dentro, se transforma em nós, olha com os nossos olhos, fala pela nossa boca? "Tenho 64 anos, ainda sou novo, não de deixem morrer!"

Dona Arminda chega viva ao hospital. Quando é entregue ao médico da Urgência de São José, fala pela primeira vez. Vira, a custo, os olhos para Maria da Luz e balbucia: "Dê-me um beijinho".

Há momentos em que Maria da Luz desconfia do seu próprio altruísmo. "Isto também vicia. Temos uma necessidade de salvar pessoas. Não sou capaz de fazer um mês de férias seguido, porque sinto falta disso. E quando chego a um local e constato que a situação não é de emergência grave, fico decepcionada, mesmo zangada".

Quando salva alguém, a sensação é inebriante. "Sinto-me... leve..." Mas quando não consegue, é terrível. Muitas vezes as equipas do INEM regressam em silêncio ao seu contentor, e assim permanecem horas, sem conseguir romper o ritual de auto-punição.

Luz nunca mais esquecerá aquele acidente, em que um carro ficou esmagado debaixo do comboio, na linha do Estoril. Aquele olhar. Eram três jovens, que num sábado à noite aceleraram através de uma passagem de nível, em nome de alguma aposta, alguma loucura incompreensível... O carro foi arrastado centenas de metros, numa amálgama de ferro e sangue. Mas uma rapariga estava viva, de olhos abertos, quando Luz chegou. Tinha os cadáveres dos amigos por cima dela, e o corpo quase todo mergulhado na massa disforme do veículo. Teria as pernas desfeitas, não era possível saber. Via-se apenas o peito e a cabeça. Era uma rapariga mulata, muito jovem. Estava acordada e olhava fixamente Maria da Luz enquanto os bombeiros tentavam levantar o comboio, abrindo caminho para o socorro. Luz esperou 45 minutos, sem poder fazer nada, e a rapariga nunca deixou de a olhar, suplicando por ajuda, pela sua vida. Ao princípio, tentou dizer qualquer coisa, que Luz não entendeu. Depois, o seu olhar foi ficando vazio. Foi ficando inconsciente, aos poucos. Quando conseguiram retirá-la, estava morta.

Maria da Luz manteve o sangue frio durante todo o tempo. Foi para casa e chorou sem parar durante dois dias.

Desde então, evita o olhar dos moribundos. Mas aquele, o olhar da mulata que não conseguiu salvar, permanecerá aceso para sempre, como uma fenda derramando a sua luz sinistra na noite dos vivos.

Há uma luz sinistra na noite. Está lua cheia e uma névoa leitosa. Vamos a toda a velocidade em direcção à ponte 25 de Abril. São 5h47 da madrugada de quinta-feira. Sónia e os dois companheiros levantaram-se há três minutos, mal ouviram o apelo no rádio. Sónia calça as luvas com nervosismo, ao constatar que se acabaram os pares do tamanho mais pequeno. Entramos no tabuleiro da ponte. Avançamos por entre o trânsito parado. É aqui. Um Ford Fiesta comercial com a parte dianteira completamente desfeita está parado na faixa esquerda. Paramos. Os tripulantes correm para o destroço do automóvel. Está um homem lá dentro. Além da ambulância, já chegaram três carros de bombeiros, mais dois da polícia, mais a viatura médica do INEM. O ferido está consciente, mas tem as pernas presas. A atmosfera é de tensão extrema, mas também de extrema organização, como se cada uma das mais de 20 pessoas no local soubesse precisamente a sua função e a cumprisse com eficácia. Ouvem-se sirenes, walkie-talkies, vozes de comando, o silvo do vento e o ruído dos carros na ponte, no sentido contrário. Com maçaricos e serras eléctricas, os bombeiros começam a abrir uma brecha pela porta do lado direito. Pela porta traseira, Sónia é introduzida no veículo, para que, através da grade que separa a bagageira dos bancos da frente, possa aplicar um colar cervical à vítima, e ficar a segurá-lo. É a única que pode fazer isto, graças à sua pequena estatura. Às 6h05, os bombeiros conseguem arrancar a porta da direita. Vê-se agora distintamente, ao luar, o homem, corpulento, cheio de sangue, e as cartas de jogar espalhadas pelo banco do lado e pelo chão do carro. Um terno de ouros, uma dama de espadas. Aos nossos pés, vê-se o rio, por entre o gradeamento metálico do pavimento. A ponte oscila. O trânsito começa a intensificar-se no sentido de Lisboa. Um polícia manda circular, com apitos e berros, os carros que abrandam, quase param, para ver o acidente, saborear o horror, quando se apercebem de que há um corpo dentro do veículo. O polícia perde a paciência, começa a insultar os condutores, "Acelera essa merda, cabrão! O que queres ver, filho da puta?" Sónia continua a segurar o colar cervical, enquanto é desmontado o volante, até ser possível fazer entrar um colete de extracção. Chega um carro com duas raparigas. Uma, magra, de olhos negros, aproxima-se, a chorar. "Eu sou amiga dele. Ai meu Deus..." Os bombeiros afastam-na. O homem fecha os olhos, mas continua a respirar. Às 6h31 conseguem tirá-lo do carro. Tem o rosto cheio de gotículas de suor. Às 7h10 chegamos ao hospital de Almada.

A rapariga de olhos negros está a espera. Fuma um cigarro, bela e sonâmbula, à luz da manhã que desponta. Aproxima-se, com passos vacilantes. Parece um pouco alheia a tudo mas ao mesmo tempo desesperada. "Ele está a dormir?" Há algo de recriminação, mas também de culpa na sua voz. Não sabemos, nunca saberemos nada dela. É uma rapariga qualquer, de olhos negros.

"Ele não acorda? O que aconteceu? João! João! Acorda, João!"

"João! João! Acorda por favor!"

"Sim, avó. Sim, sim. O que aconteceu?"

Não se ouve mais a mulher. Apenas a voz sonolenta e divertida da criança.

Maria da Luz desliga o telefone.





salamandrine 15:27



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